terça-feira, 4 de dezembro de 2007

CRÔNICA DA LOUCURA

O melhor da Terapia é ficar observando os meus colegas loucos. Existem
dois tipos de loucos. O louco propriamente dito e o que cuida do
louco: o analista, o terapeuta, o psicólogo e o psiquiatra. Sim,
somente um louco pode se dispor a ouvir a loucura de seis ou sete
outros loucos todos os dias, meses, anos. Se não era louco, ficou.
Durante quarenta anos, passei longe deles. Pronto, acabei diante de um
louco, contando as minhas loucuras acumuladas. Confesso, como louco
confesso, que estou adorando estar louco semanal.
O melhor da terapia é chegar antes, alguns minutos e ficar observando
os meus colegas loucos na sala de espera. Onde faço a minha terapia é
uma casa grande com oito loucos analistas. Portanto, a sala de espera
sempre tem três ou quatro ali, ansiosos, pensando na loucura que vão
dizer dali a pouco.
Ninguém olha para ninguém. O silencio é uma loucura. E eu, como
escritor, adoro observar pessoas, imaginar os nomes, a profissão,
quantos filhos têm, se são rotarianos ou leoninos, corintianos ou
palmeirenses.
Acho que todo escritor gosta desse brinquedo, no mínimo, criativo. E a
sala de espera de um "consultório médico", como diz a atendente
absolutamente normal (apenas uma pessoa normal lê tanto Paulo Coelho
como ela), é um prato cheio para um louco escritor como eu. Senão,
vejamos:
Na última quarta-feira, estávamos:
1. Eu
2. Um crioulinho muito bem vestido,
3. Um senhor de uns cinqüenta anos e
4. Uma velha gorda.

Comecei, é claro, imediatamente a imaginar qual seria o problema de
cada um deles. Não foi difícil, porque eu já partia do principio que
todos eram loucos, como eu. Senão, não estariam ali, tão cabisbaixos e
ensimesmados.
(2) O pretinho, por exemplo. Claro que a cor, num país racista como o
nosso, deve ter contribuído muito para levá-lo até aquela poltrona de
vime. Deve gostar de uma branca, e os pais dela não aprovam o namoro e
não conseguiu entrar como sócio do "Harmonia do Samba"? Notei que o
tênis estava um pouco velho. Problema de ascensão social, com certeza.
O olhar dele era triste, cansado. Comecei a ficar com pena dele.
Depois notei que ele trazia uma mala. Podia ser o corpo da namorada
esquartejada lá dentro.Talvez apenas a cabeça. Devia ser um assassino,
ou suicida, no mínimo. Podia ter também uma arma lá dentro. Podia ser
perigoso. Afastei-me um pouco dele no sofá. Ele dava olhadas furtivas
para dentro da mala assassina.
(3 )E o senhor de terno preto, gravata, meias e sapatos também pretos?
Como ele estava sofrendo, coitado. Ele disfarçava, mas notei que tinha
um pequeno tique no olho esquerdo. Corno, na certa. E manso. Corno
manso sempre tem tiques. Já notaram? Observo as mãos. Roía as unhas.
Insegurança total, medo de viver. Filho drogado? Bem provável. Como
era infeliz esse meu personagem. Uma hora tirou o lenço e eu já estava
esperando as lágrimas quando ele assoou o nariz violentamente,
interrompendo o Paulo Coelho da outra. Faltava um botão na camisa.
Claro, abandonado pela esposa. Devia morar num flat, pagar caro, devia
ter dívidas astronômicas. Homossexual? Acho que não. Ninguém beijaria
um homem com um bigode daqueles. Tingido.
(4) Mas a melhor, a mais doida, era a louca gorda e baixinha. Que
bunda imensa. Como sofria, meu Deus. Bastava olhar no rosto dela. Não
devia fazer amor há mais de trinta anos. Será que se masturbaria? Será
que era esse o problema dela? Uma velha masturbadora? Não! Tirou um
terço da bolsa e começou a rezar. Meu Deus, o caso é mais grave do que
eu pensava. Estava no quinto cigarro em dez minutos. Tensa. Coitada. O
que deve ser dos filhos dela? Acho que os filhos não comem a
macarronada dela há dezenas e dezenas de domingos. Tinha cara também
de quem mentia para o analista. Minha mãe rezaria uma Salve-Rainha por
ela, se a conhecesse.
Acabou o meu tempo. Tenho que ir conversar com o meu psicanalista.
Conto para ele a minha "viagem" na sala de espera. Ele ri..... ri
muito, o meu psicanalista, e diz:
- O Ditinho é o nosso office-boy. O de terno preto é representante de
um laboratório multinacional de remédios lá no Ipiranga e passa aqui
uma vez por mês com as novidades. E a gordinha é a Dona Dirce, a minha
mãe. E você, não vai ter alta tão cedo...


(Luís Fernando Veríssimo)

Nenhum comentário: